A lenda é antiga e conhecida. Apesar das diferenças, muitas versões narram a trajetória de um casal de indígenas Maués que queria ter filhos e fez um pedido a Tupã. A divindade concedeu o desejo e, um tempo depois, veio um menino que cresceu lindo e generoso. Porém, o garoto despertou a inveja de Jurupari, a entidade do mal. Um dia, Jurupari se transformou em serpente e mordeu a criança, que morreu na hora.
A mãe chorava, desesperada, ao passo que trovões e relâmpagos surgiam no céu. Ela entendeu que era um recado de Tupã para plantar os olhos do filho e assim o fez. Naquele local, cresceu uma planta cujos frutos lembram olhos humanos – o guaraná. Pela história – seja a lenda, seja a factual, já que Maués tanto é o nome da etnia quanto de uma cidade amazonense cuja economia gira em torno da fruta -, pouca gente imaginaria que é possível associar o guaraná a qualquer outro lugar que não seja a região amazônica.
A realidade, contudo, é que boa parte do guaraná que você consome – das bebidas aos comprimidos, passando por produtos de beleza – pode até ser símbolo da Amazônia, mas provavelmente veio da Bahia. Maior produtor de guaraná do mundo, o estado respondeu por quase 64% de toda a colheita brasileira no ano passado, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A última safra chegou a alcançar 1,5 mil toneladas.
Além disso, das 15 cidades que mais produzem guaraná no país, dez são baianas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A liderança no Brasil é de Ituberá, no Baixo Sul do estado, e as ‘colegas’ de região Valença e Taperoá também fazem bonito: são, respectivamente, a terceira e a quarta do país.
Comercializado em pó ou em grãos, o guaraná baiano atende tanto ao mercado interno quanto ao exterior, com envios para países como Alemanha, Itália, França e Estados Unidos.
Embora o guaraná não seja uma espécie nativa, a Bahia tem mais do que o dobro do segundo estado – o Amazonas, de onde o guaraná vem originalmente, e que fica em torno de 28%. “Quase todos os estados brasileiros compram o guaraná da Bahia. O mercado do Amazonas é voltado para cá, para o próprio estado, e tem algumas coisas para exportação. Já o da Bahia é muito comercializado pelo preço”, explica o agrônomo André Atroch, pesquisador da Embrapa Amazônia Ocidental da área de melhoramento genético do guaranazeiro.
Mas se o guaraná não é nem mesmo uma fruta local, o que explica o domínio da Bahia? Para entender as razões pelas quais o estado se tornou o maior produtor do país – e, consequentemente, do planeta, uma vez que o Brasil responde por mais de 90% da produção mundial -, é preciso analisar tanto aspectos históricos quanto o contexto atual.
Mudas
O primeiro registro de que se tem notícia do guaraná na Bahia é de 1925, quando a então Sociedade Bahiana de Agricultura introduziu mudas da espécie no Retiro. Menos de uma década depois, em 1933, 30 mudas foram plantadas na Estação Experimental de Água Preta – que depois viria a ser Escola Média de Agricultura da Região Cacaueira, em Uruçuca, e atualmente é um campus do Instituto Federal Baiano (IF Baiano). Mas foi apenas em 1961 que o primeiro plantio de guaraná com fins comerciais foi feito na Bahia.
Outro ponto importante na linha do tempo do guaraná aconteceu a nível nacional: foi a promulgação do decreto 5.823, que ficou conhecido como Lei dos Sucos, em 1973. Essa legislação, de acordo com a Embrapa, acaba por beneficiar a chamada domesticação. Uma vez que ficou estabelecido que cada litro de refrigerante teria entre 0,2g a 2g de guaraná, enquanto o xarope deveria ter de 1g a 10g de guaraná por litro, a consequência direta foi que a demanda pelo produto aumentou.
“Quando o decreto foi regulamentado, foi um divisor de águas. Muita gente passou a se interessar por isso”, explica o pesquisador Lucio Pereira Santos, da Embrapa Amazônia Ocidental. “A Bahia viu essa oportunidade, porque era um negócio que estava crescendo muito no mundo e o clima tinha muita similitude com o daqui (do Amazonas)”.
As pesquisas com o guaraná na Bahia foram iniciadas pela Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), em 1975. Naquele momento, materiais do antigo Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Úmido (Cpatu), hoje Embrapa da Amazônia Ocidental, foram levados para a estação experimental no município de Una.
Produzir uma cultura permanente, que era a ideia do guaraná na Bahia, envolve um manejo diferente de uma cultura temporária, segundo o chefe da seção de pesquisas agropecuárias do IBGE no estado, Rodrigo Anunciação. “Aquela planta fica alguns anos produzindo, porque envolve um custo. Essa produtividade da Bahia se dá por ter uma área muito grande plantada. É uma agricultura essencialmente de pequeno porte”, diz.
Aos poucos, mais fazendas do Baixo Sul baiano começaram a plantar guaraná. Dentro de alguns anos, o guaranazeiro se popularizou naquelas terras. Segundo o engenheiro agrônomo Assis Pinheiro Filho, diretor de desenvolvimento da agricultura da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura do Estado (Seagri), a grande vantagem da região é que se trata de uma área propícia para o cultivo.
Além da possibilidade de plantar o ano todo, com chuva e Sol, o solo está sempre úmido. Assim, as condições climáticas não são muito diferentes das encontradas na Amazônia, local de origem do guaraná. “Acho que o principal para a Bahia ter conseguido isso foi essa questão da pesquisa, do clima do Baixo Sul ser propício e a EBDA ter criado essa cadeia produtiva do guaraná, difundindo o plantio”, diz Pinheiro Filho, citando a extinta Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, que deixou de existir em 2016.
A forma de produção do guaraná também é diferente na Bahia. Por muito tempo, o Amazonas tinha uma produção que poderia ser comparada ao extrativismo, ainda que novas mudas sejam plantadas. Já os produtores baianos focaram no plantio comercial, com técnicas de espaçamento, o que possibilitou o crescimento.
Produtividade
De fato, segundo o pesquisador André Atroch, da Embrapa Amazônia Ocidental, o Baixo Sul baiano tem solos considerados mais férteis, o que já leva a uma produtividade maior. Além disso, embora os dias sejam quentes, as noites costumam ter temperaturas mais amenas. Isso evita que doenças fúngicas, como a antracnose, que ataca o guaranazeiro, se espalhem. Elas são comuns na região amazônica, sendo um desafio para os produtores de lá.
“Então, em meados da década de 1980, a Bahia começou sem problemas de doença e alta produtividade”, explica. Pela oferta, é comum que o guaraná daqui seja mais barato do que o do Amazonas. Mas em agosto deste ano, quando atingiu um preço razoável para os produtores, a diferença era de R$ 50 pagos aos produtores baianos por quilo contra R$ 43,61 no Amazonas.
Foi justamente a presença da antracnose que fez com que a unidade de pesquisa começasse o trabalho de melhoramento no Amazonas, como explica o pesquisador Lucio Pereira Santos, também da Embrapa. Por isso, chegaram à conclusão de que era necessário mudar a forma de propagação do guaranazeiro. Ao invés de sementes, passaram a usar mudas clonadas, tal qual a indústria de celulose.
No entanto, em suas últimas visitas à Bahia, ele chegou a identificar focos de antracnose surgindo, assim como exemplares com Tripes, insetos pequenos conhecidos como tesourinhas e que também são uma praga.
“Não existia explicação científica para não ter atacado aí. Por isso, acredito que muitos plantios podem ter convivido com isso sem ninguém saber. Por isso, estamos com a proposta de levar materiais resistentes e trabalhar com nossos tratos. Já fui dar aula de poda a vários municípios produtores”.
Segundo ele, ainda que a Bahia se mantenha na liderança, os números têm indicado uma queda gradual na produtividade. Em 2015, por exemplo, a Bahia tinha 6.736 hectares de área colhida, com produção de 400 quilos por hectare. Em 2022, foram apenas 5,5 mil hectares, com produção de 281 quilos por cada um deles.
“Fiquei pasmo com isso. Eu não sei o que aconteceu. Acho que é falta de estímulo. Por que o guaraná despenca? Falta de poda, de adubação e de tratos culturais. Parece que o pessoal está abandonando e na hora errada, porque o guaraná em ramo já bateu R$ 70 o quilo”.
Variar a produtividade, segundo o presidente da Federação da Agricultura e da Pecuária na Bahia (Fameb), Humberto Miranda, é a “norma” para cadeias como a do guaraná. Seria um fator sazonal, já que o guaranazeiro produz, em geral, apenas depois do quinto ano de idade.
“Vejo o guaraná como uma cultura do futuro, porque está entrando numa possibilidade de mercado cada vez maior. Ele tem sido muito utilizado em produtos naturais, na saúde de atletas e de pessoas que praticam exercícios, como fonte de energia”, avalia.
Foi na década de 1980 que os fundadores da empresa Guaraná do Brasil, uma das principais do estado, adquiriram a primeira fazenda produtora de guaraná, em Ituberá. Depois da Jacarandá, veio a fazenda Karina, também referência para a colheita da região. No começo, foi um trabalho com erros e acertos, como conta o proprietário das fazendas e representante da Guaraná do Brasil, Leonardo Araújo.
Ele e seu irmão estão hoje à frente da empresa, criada por seus pais. Por iniciativa própria, os fundadores buscaram a parceria com a Embrapa da Amazônia ainda no início dos anos 2000. Segundo ele, isso ajudou tanto a desenvolver o guaraná na região quanto a própria produção da empresa.
Atualmente, a Guaraná do Brasil tem uma área de 72 hectares destinada ao cultivo do guaraná. “Iniciamos um processo de reprodução intenso onde a maior parte dessas plantas será da variedade BRS Noçoquém, que é a primeira variedade de guaraná do mundo a ser propagada por sementes”, explica, sobre o replantio que será feito em parceria com a Embrapa (veja mais abaixo).
A meta também é plantar cerca de 1,5 mil plantas entre 2023 e 2024, sendo elas propagadas por estacas. Além da BRS Noçoquém, o plano é que cinco novas variedades sejam introduzidas nas fazendas. Para o ano que vem, os planos são de fazer o primeiro estudo sobre guaraná orgânico no Brasil. A empresa vem investindo no guaraná orgânico, cujo manejo é diferente do guaraná convencional.
Enquanto o tradicional depende menos do trabalho de roçagem e usa herbicidas para controle do mato, o guaraná orgânico exige que a roçagem seja feita quatro vezes por ano. Além disso, a colheita aqui acontece do final de novembro até fevereiro. Depois da colheita, é preciso fazer um cronograma de adubação que segue até o período de floração. Em seguida, é feito o controle de ervas daninhas para a safra seguinte.
Um dos maiores desafios de se produzir guaraná orgânico na Bahia, hoje, é a falta de pesquisas sobre o manejo desse tipo de fruta, para Araújo. “São muitas coisas diferentes do convencional. É começar a olhar com outros olhos para adubação biológica ao invés de olhar apenas para adubação mineral. São as maneiras de enfrentar esses nossos problemas, como o controle do mato”.
A outra questão a ser enfrentada é a variação de preço no guaraná. Segundo ele, atualmente, na Bahia, existe um movimento para dar um preço justo ao guaraná. Muitos pequenos produtores acabavam vendendo por valores muito abaixo dos custos, por isso, o valor foi elevado nos últimos tempos. Ainda assim, existe variação praticamente todos os meses.
Indústria
A indústria também tem representantes de peso que usam o guaraná da Bahia. Além de refrigerantes de empresas de pequeno e médio porte pelo Brasil, há casos como o da Natura, que usou o produto baiano na linha Ekos. Embora tenha sido descontinuada, a linha do guaraná foi vendida por cerca de dez anos, segundo a empresa.
A produção local tornou possível a criação da primeira fábrica de energético natural à base de guaraná do Brasil, em 1988: a Fábrica Arrebite, em Ituberá. O guaraná de bolso Arrebite foi criado pelos mesmos fundadores do Guaraná do Brasil. Na época, o então casal Luciano e Ana Claudia Queiroz tinha começado com pequenas plantações e vendia guaraná moído praticamente de porta em porta.
“Naquela época, o guaraná custava 0,50 centavos o quilo”, lembra Ana Claudia, que é proprietária da Fábrica Arrebite. Após a separação do casal e da morte de Luciano, há seis anos, ela assumiu a fábrica enquanto os filhos tocam as fazendas.
A ideia para o Arrebite veio em meio a uma viagem a Feira de Santana. “A gente fez uma entrega de guaraná a uma distribuidora e, quando voltou para Ituberá, já tarde da noite, ele (Luciano) começou a ter aquele sono de apagão. Eu era muito nova e não sabia dirigir”, lembra.
Por alguns instantes, ela chegou a olhar para os céus e perguntar o que fazer. Até que veio uma imagem à mente: e se usasse extrato de guaraná como uma mistura capaz de caber em um recipiente como o Epocler? O popular remédio para o fígado vinha em recipientes individuais e foi uma inspiração para a forma de envase do que viria a ser o produto.
“O pai de Luciano era químico aposentado e nos ensinou como fazer para tirar o extrato de guaraná no fogão. A gente chegou em casa, foi para a cozinha, fez o extrato, mexeu a panela com colher de pau e fui para a farmácia comprar uma caixa de Epocler. Joguei fora o produto e coloquei o extrato de guaraná dentro, como tinha visualizado. Deu certo e o sabor ficou bacana”, conta.
Dali em diante, o produto ficou profissional e popular e a fábrica passou a existir. Como pioneira, Ana Claudia viu surgirem outros produtos parecidos nos anos seguintes, mas acredita que a credibilidade da marca estava atrelada ao compromisso com o guaraná.
Hoje, o arrebite é vendido em farmácias, mas os planos para o futuro são maiores. Depois de um período de crise econômica e pandemia, ela acredita que é preciso trazer novos públicos, inclusive jovens, que estão acostumados a outros produtos energéticos. A fábrica está passando por ajustes para o próximo ano e, além disso, devem vir novas formulações, inclusive de uma bebida que, além de energética, tenha maior concentração de água. Algo que possa matar a sede, sem necessariamente ser um refresco.
“Estamos reformulando tudo. Minha ideia é envasar, continuar com o arrebite, mas estamos com um projeto para atender as cooperativas da região, porque temos uma fábrica muito grande. Temos condição de estrutura para atender a região e fazer parcerias com produtores de outras cidades, como Nilo Peçanha, Taperoá, Valença. Vai ser para todos que quiserem moer seu guaraná e ter um valor maior agregado”, adianta.
Exportação
A empresa Sousa Ribeiro exporta guaraná baiano desde 2006. Assim, o produto é comprado, beneficiado e vendido para 18 países, em praticamente todos os continentes, com exceção da Oceania. Isso porque, de acordo com o proprietário da companhia, Roberto Lessa, a decisão era não trabalhar com a exportação de commodities, mas com produtos que pudessem ter valor agregado por meio de qualidade e serviços.
“Com o guaraná conseguimos essa agregação de valor”, diz ele. O processo começa com parcerias com produtores. Uma vez que recebem a matéria-prima, a empresa analisa as condições de qualidade em laboratório para saber se o produto está apto a ser beneficiado. “Em nosso fluxo, conseguimos fazer a limpeza e padronização necessárias aos mais exigentes mercados”, acrescenta.
Ele explica que a demanda do guaraná cresceu também pela alta do café verde, o green coffee. Por isso, o preço do guaraná também cresceu: saiu de R$ 9 o quilo para R$ 70, em alguns meses, em quatro anos. Isso, contudo, pode ser o prenúncio de uma situação indesejada. “O perigo pode estar à frente e bem próximo. O aumento expressivo pode causar um ‘crash’ vigoroso na demanda, fazendo com que os preços sejam derrubados nos próximos cinco anos”, calcula.
Para Lessa, a produção baiana não acompanhou o aumento da demanda. Os novos plantios vêm sendo feitos, mas pelo próprio tempo do guaranazeiro, ele estima que os resultados devem aparecer timidamente entre cinco e seis anos. “A Bahia precisa renovar seus pomares de guaraná, com melhor genética, mais tecnificação do manejo e uma gestão e planejamento agrícola mais eficazes”, sugere.
Marca
Apesar de uma caminhada tão longa, muita gente não sabe nem mesmo que a Bahia produz qualquer guaraná. Para muitos produtores e especialistas, a cadeia carece de uma divulgação específica que mostre que o guaraná também pode ser baiano.
“Acredito que falta comunicação. É uma coisa que não é falada. Tem que fazer na internet, feiras, ir na televisão. Nós investimos muito para trazer esses doutores (os pesquisadores da Embrapa da Amazônia) para Ituberá, por exemplo. É um trabalho de formiguinha, nada acontece por acaso”, opina Ana Claudia Queiroz, da Fábrica Arrebite.
Não existe, até o momento, segundo nenhuma das fontes ouvidas, a criação de uma marca ou selo específico que identifique o guaraná da Bahia. O presidente da Faeb, Humberto Miranda, concorda que é preciso mostrar a quem consome guaraná que a Bahia é o maior produtor da fruta. Isso poderia ser alcançado tanto com a criação de um selo quanto com campanhas que falem sobre a qualidade do guaraná.
“Isso já passou de ser feito. A Bahia tem o carimbo de ser a produtora do melhor cacau do Brasil e tem uma região chamada de região cacaueira. Precisa de uma campanha para mostrar a importância que o cacau também tem”.
Os símbolos comerciais criam uma identidade geográfica que indica que um produto feito naquele local tem características específicas daquela região ou que só aqueles produtores conseguem resultados como aqueles. Na avaliação de Miranda, porém, é preciso de um esforço conjunto, envolvendo entidades do setor, a própria Faeb, o governo e outras instituições.
“Não dá para um empresário sozinho fazer isso. É um movimento que tem que ser compartilhado. Mas, para ser sincero, a gente está longe disso porque a gente não tem dado devida importância à cultura do guaraná”, reflete ele, que defende que os produtores provoquem políticas públicas do guaraná, como a recriação da câmara setorial. “A Bahia é um estado muito diverso e tem muitas culturas. O governo também não tem como tomar a iniciativa de todas as atividades, então é bom os produtores se manifestarem por essa câmara”.
Para Assis Pinheiro Filho, da Seagri, é possível discutir o futuro do guaraná com produtores e entidades. Neste momento, a secretaria está reativando as câmaras setoriais de diversas cadeias produtivas. O guaraná era uma das culturas que tinha câmara setorial e deixou de ter. As inscrições para o cadastro de entidades interessadas, inclusive, foi prorrogada até o dia 20 de outubro.
“Mas o pessoal do guaraná tem que se manifestar para reativar (a câmara específica). Foi definido que reativaríamos as câmaras a partir da demanda, porque não adianta criar de cima para baixo. A gente captando a demanda de baixo para cima, tem o comprometimento do pessoal”, afirma.
Problemas
Outro problema enfrentado pelo guaraná é algo que, na verdade, não é só dele. O chefe de pesquisas agropecuárias do IBGE na Bahia, Rodrigo Anunciação, explica que, nos últimos anos, cresceram os relatos de escassez de mão de obra no campo, tanto porque essa mão de obra não está mais disponível quanto pelo preço elevado de quem ainda se dispõe a trabalhar com esse setor.
“Várias culturas permanentes têm perdido a produtividade. Não só o guaraná, mas também o dendê no Baixo Sul e a laranja no Nordeste do estado vêm necessitando de mão de obra e assistência técnica. As pessoas pedem um valor que os produtores não têm como pagar porque o preço do produto não compensa”, diz. Isso se dá também porque boa parte desses produtos é vendido por atravessadores intermediários, o que aumenta custos e diminui a margem dos produtores. “O cooperativismo é uma boa saída, porque fortalece mais a produção”.
Recuperar a assistência técnica para os produtores é um caminho sugerido pelo engenheiro agrônomo Assis Pinheiro Filho, da Seagri. Ele admite que seria preciso fortalecer mais a pesquisa sobre o guaranazeiro. “Com a extinção da EBDA, o estado ficou muito capenga nesse aspecto”, admite.
Outra possibilidade é a mecanização, que poderia responder o problema sobre a mão de obra. Essa saída, inclusive, estaria sendo buscada pelos produtores de laranja do Nordeste baiano. Atualmente, a secretaria tem um programa de distribuição de máquinas e equipamentos por meio de permuta e cessão de uso a associações e prefeituras.
Um dos desafios, agora, é garantir que a Bahia não apenas siga como maior produtora do guaraná do país, como também que o plantio cresça mais. Para o presidente da Faeb, Humberto Miranda, uma das maiores dificuldades é a abertura de novos mercados – em especial, internacionais.
Para isso, seriam necessárias políticas públicas tanto da Bahia quanto do Brasil. “Estou falando de relações internacionais, como a gente faz com a carne brasileira, como faz com a soja, o milho, o algodão. Seria o caso de abrir relacionamento com países consumidores para esse tipo de bebida”, diz, citando isotônicos e energéticos.
Com menos cafeína, guaraná da Bahia ainda não passou por melhoramento genético
Enquanto o guaraná da Bahia ainda é o tradicional – ou seja, apenas a espécie Paullinia cupana var. sorbilis -, o do Amazonas vem passando por melhoramento genético, devido aos estudos da Embrapa nos últimos anos. Enquanto o Amazonas tem maioria de guaranazeiros da variedade BRS Maués, a Bahia não tem nenhuma dessas feitas em plantio comercial sendo acompanhadas.
Algumas mudas chegaram a ser introduzidas aqui, no início dos anos 2000, mas não foram avaliadas, segundo o pesquisador André Atroch, da Embrapa Amazônia Ocidental. Há alguns anos, a empresa pública tem convênio com a Guaraná do Brasil, empresa de Ituberá, inclusive com o uso de sementes provenientes dessa área. No entanto, com limitações como os cortes orçamentários no investimento à pesquisa no governo federal desde 2015, bem como a pandemia da covid-19, o projeto foi prejudicado.
Agora, porém, tanto com a recomposição orçamentária federal em 2023 quanto com a parceria com a empresa, a previsão de André é de introduzir variedades diferentes e acompanhar quais vão se dar melhor na Bahia nos próximos meses. “Vamos introduzir com mais orientação técnica, com avaliações e acompanhamento. Inclusive, temos materiais com alto nível de cafeína que pretendemos introduzir aí e também materiais descafeinados, que também têm nicho de mercado”.
Outra diferença entre os dois é que o guaraná da Bahia tem menos cafeína do que o do Amazonas. Enquanto o daqui tem um teor de 2,5% a 3% de cafeína, o de lá começa em 3% e pode chegar a 10% em algumas variedades. Até então, esse é um fator que não vem sendo levado em conta pelas empresas que compram o guaraná, mas nada impede que esse seja um critério no futuro.
“É como a cana de açúcar. No começo, ninguém pagava a cana pelo teor de sacarose, mas depois viram que uma casca grossa com teor de sacarose baixo implicava no maior custo industrial. Por isso, o mercado começou a exigir canas mais finas e com alto teor de sacarose. Daí entrou o melhoramento genético. É a mesma coisa com o guaraná”, explica Atroch.
Desde 2015, atividades que tinham sido planejadas com o guaraná da Bahia tiveram que ser interrompidas. Nos últimos três anos, a Embrapa da Amazônia só recebeu orçamento suficiente para manter as plantas cultivadas lá, sem atividades de expansão. “A gente não estava de braços cruzados, a perna que não estava comprida o suficiente para ir. Mas agora nós vamos voltar”.
Para o também pesquisador da Embrapa Amazônia Ocidental Lucio Pereira Santos, o guaraná nunca recebeu o fomento que deveria ter recebido, ainda que tenham havido momentos de altos e baixos. “O guaraná tem uma carência estupenda de pesquisa, de políticas públicas e de investimentos”, acrescenta.
Fonte: Correio