Qual seria a sua reação ao receber na porta de sua casa uma caixa de madeira com uma ossada humana? E para deixar a situação ainda mais tenebrosa, você descobre que os restos mortais são de sua mãe. Pois uma senhora de 71 anos vivenciou essa situação inusitada – e macabra. Moradora do bairro do Engenho Velho de Brotas, a idosa alega que recebeu de um parente a urna no dia 23 de abril deste ano e, desde então, passados quase quatro meses, ela vive um drama para enterrar de volta os ossos de Vanina Bomfim de Lima, falecida em 2016. A sina dela virou caso de polícia e foi registrada na 6ª Delegacia (Galés) por destruição, subtração ou ocultação de cadáver.
A idosa conta que recebeu a caixa das mãos do marido de uma prima. Ela diz que a prima também estava na hora. “Eu vi que ele carregava uma caixa, mas não sabia o que era aquilo. Foi aí que ele disse: ‘Está aqui! Se vire para enterrar a ossada de sua mãe! Quase morri. Não acreditei. Eu comecei a gritar: ‘Meu Deus, o que é? Jesus, meu Pai, o que é isso?’. Fiquei tonta, sentei-me no sofá e desfaleci”, declara a idosa, que só viu o conteúdo por foto. “Eu não tive coragem de ver pessoalmente. Começo a passar mal. Aí pedi ao meu neto, que mora no andar de cima. Ele abriu, fez a foto e me mostrou”, diz a mulher.
A ossada estava enterrada no Cemitério Jardim da Saudade, em Brotas. A instituição confirma que houve a retirada, mas salientou que foram cumpridos os trâmites legais para a exumação – é o processo de retirada dos restos mortais de uma pessoa da sepultura após determinado tempo. (leia resposta abaixo).
Prima
Ainda perplexa com a situação, a idosa conta que Vanina era prima carnal de Maria* (nome fictício), mãe da prima que ela acusa ter sido a mentora do ato macabro. “Não sei o porquê de tudo isso”, lamenta ela. Quando viva, Maria, que tinha uma situação financeira boa – dona de apartamentos e casas na Barra e no Centro de Salvador –, comprou um jazigo no Jardim da Saudade. Quando Vanina faleceu devido a uma insuficiência cardíaca aos 90 anos em 8 de dezembro de 2016, Maria fez questão de que o corpo fosse enterrado no mausoléu, cuja manutenção era paga por ela. Em 18 de janeiro de 2019, Maria, aos 80, morreu de causas naturais e foi colocada na mesma sepultura.
Conforme a idosa, a ossada da mãe foi retirada sem que a aposentada fosse informada. “Lá, no cemitério, estão todos os meus dados e ninguém me procurou”. Ela disse que depois ligou para o Jardim da Saudade, para saber o porquê de toda a situação e para colocar os restos mortais de volta ao jazigo. “A gerente de lá disse que minha prima retirou as duas ossadas para enterrar em outro lugar e que não poderia mais receber os ossos de minha mãe”, conta.
Então, a aposentada diz que procurou a Semop (Secretaria de Ordem Pública), que realiza cremações sem custos para pessoas em situação de vulnerabilidade. Mas o pedido foi negado. “Disseram que se fosse enterrado pela prefeitura, poderiam fazer”, conta.
Ela relata ainda que ligou para a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, “pra ver se eles queriam usar nas aulas ou pesquisas. Venho pedindo ajuda a todos esses órgãos, mas até agora nada. Não sei o que fazer com a ossada. Não pode ficar aqui. Na casa do meu neto, tem gatos, que querem abrir a caixa”, relata ela, aflita.
Boneca
A aposentada diz que, quando conta o fato a qualquer pessoa, a reação é de espanto. Ela lembra que um policial militar ficou pasmo. “Ele disse pra mim: ‘Em toda a minha vida de polícia, nunca vi uma situação como essa, retirar a ossada de um cemitério e colocar na casa de alguém’”, conta ela, que fez uma denúncia na 6ª Delegacia (Galés).
A caixa branca, de aproximadamente 80 cm de largura, contém um crânio, com alguns fios de cabelo, vários ossos e ainda uma boneca de pano preta, com vestido vermelho. “Eu não sei o motivo. Quando enterrei minha mãe, não havia essa boneca. E está bem conservada”, diz a idosa, que acusa a prima de ter colocado o brinquedo na caixa. Perguntada se havia alguma justificativa, a aposentada disse que não sabia. “Só ela pode explicar por que fez isso”. No entanto, no dia em que a caixa foi entregue, ela relata ter sofrido racismo. “Ela (prima) disse assim bem alto: ‘Você não é a minha parenta, você não é da minha família, sua negra! Eles são brancos, descendentes de italianos”, conta.
A aposentada relata que as duas famílias não são próximas, apesar do carinho que Maria nutria por Vanina. O distanciamento aconteceu após um matrimônio. “Minha mãe se casou com um homem negro e eles nunca aceitaram. É por isso o afastamento deles. Por causa desse preconceito, minha mãe retirou o sobrenome da família”, diz a idosa, que alega, em seguida, não ter dinheiro para providenciar o destino da ossada. “A aposentadoria que recebo é para meus remédios. Tenho uma séria de complicações de saúde. Já tive até depressão”, diz.
Cemitério
A direção do Cemitério Jardim da Saudade traz uma versão diferente da apresentada pela idosa. Segundo a gerente-geral Bárbara Cristina Bembem de Brito, a filha de Maria decidiu pela exumação, porque não ia mais morar em Salvador e por isso optou pela transferência das ossadas para o cemitério de uma igreja. Brito conta que a idosa foi comunicada previamente.
“A dona do jazigo entrou em contato com a prima [a idosa]. Então, a prima disse que ‘pegasse a ossada e jogasse no lixo’. Ela disse que não ia fazer isso, que ia enterrar as duas [ossadas]. Foi lá na casa dela, porque para levar a outra ossada para a igreja, a prima tinha que estar presente. Aí ela [prima] disse que deixasse a ossada lá, que daria um jeito”, conta Brito. Três meses depois, o cemitério foi intimado na 6ª DP. “Apresentamos todas as documentações, inclusive propomos que a cremação seja através da Prefeitura, mas ela até hoje não levou a ossada”, declara Brito.
Geralmente, a exumação é feita três anos após a data de sepultamento. O processo deve ser acompanhado por um parente direto e pode ser feito por uma questão judicial ou para transferir os restos mortais para outro espaço ou cidade.
A gerente do cemitério ficou surpresa com o fato de a ossada de Vanina estar numa caixa de madeira com a boneca. De acordo com ela, os restos mortais saem numa urna de acrílico lacrada, com uma chapa de alumínio com o nome do falecido (a). No recipiente, não vai nada além da ossada. “Daí, a gente embala, com dois sacos pretos, e entrega para a família ou a funerária. Não tem como ter saído daqui de outra forma, aqui nem caixa de madeira temos. Com certeza, a urna funerária foi violada”, afirma Brito.
Investigação
O CORREIO conversou também com o delegado responsável pelo caso. “Estamos tentando dar um encaminhamento dessa ossada na casa dela [idosa]. Todas as diligências foram feitas, todas as pessoas que tiveram participação foram ouvidas e a gente vai verificar se há ou não crime. O que parece, até então, é que não há um indício de crime. Há uma situação que talvez tenha que ser resolvida em outro âmbito e não na seara penal”, declara Ramon e Silva Costa, delegado plantonista da 6ª DP (Galés), sem dar mais detalhes sobre o assunto.
Questionado sobre o fato de a ocorrência ter sido registrada por destruição, subtração ou ocultação de cadáver, ele respondeu que “é um registro inicial da narrativa da pessoa”. “O registro inicial não quer dizer que foi o que aconteceu. Aí a autoridade policial investiga, dá a destinação e, se for um fato atípico, será alterada essa análise jurídica feita inicialmente”, diz.
Posicionamentos
Procurada, a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública disse que “já dispõe, em seu acervo, de todos os modelos anatômicos de estudo, por isso não recebe esse tipo de material”.
Já a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) informou que “realiza cremação gratuita de restos mortais sepultados e exumados nos cemitérios públicos municipais”. Para mais informações, o órgão orienta consultar o site: https://ordempublica.salvador.ba.gov.br/cemiterio-publico/
Ossada no feijão
Se a moradora do Engenho Velho de Brotas está apavorada com os restos mortais da própria mãe, Israel dos Santos Assis, da Região Metropolitana de Salvador (RMS), não teve a mesma reação ao violar uma sepultara e roubar uma ossada humana no cemitério da cidade, no último dia 23. Mas a coragem dele foi muito mais além: ele usou os ossos para cozinhar um feijão.
“Lavei, tratei, joguei no feijão. Mas não pode comer não, só mastigar. Depois joga fora, não engoli não. [É só] para sentir o gosto. Ainda botei Sazon”, revelou ele, em um vídeo, que circula nas redes sociais. Israel foi preso em flagrante em julho, acusado de violar sepulturas em São Francisco do Conde.
No vídeo, ele ainda detalha que entrou no cemitério durante a noite para não ser visto por ninguém e levou uma marreta para abrir os caixões. Questionado onde ele pegou a ossada, ele conta que foi no Cemitério do Coroado e relembra como abriu a tampa do caixão. “Ninguém viu, não. De noite”, disse. “Estava novo, não era velho”, acrescenta.
No dia da prisão, os policiais encontraram com ele um saco contendo ossada humana. A polícia diz que ele foi preso por violar sepultura e não há nenhuma informação sobre prática de canibalismo na ação. O suspeito também será investigado por tráfico Ilícito e uso indevido de drogas
Fonte: Correio